sábado, 23 de novembro de 2013

A intrépida Mrs. Lessing


A VISÃO entrevistou a escritora britânica, prémio Nobel da Literatura, que morreu domingo aos 94 anos, na sua casa, em Londres. Uma conversa que teve lugar em 2008, para agora recordar a "passionária, revolucionária e desbocada".



É a voz que se ouve primeiro, enfiada nos pulmões do edifício de tijolos amarelo-vermelho-desmaiado, em Hampstead, alinhado ao lado de uma dezena de prédios iguais, com janelas salientes e arbustos desordenados de flores. Uma voz arranhada pela velhice mas viva, tom de comando inequívoco. Franqueada a porta, sem tropeçar na caixa de reciclagem e nos everests de jornais, a cabeça delicada de Doris Lessing espreita do primeiro andar.

Aí está a sala de estar, descrita em todas as entrevistas: a luz refletida no espelho ornado de pequenas estatuetas, o conforto oriental dos sofás rasos ao chão, a explosão verde a denunciar o jardim. E a presença do papel: romances alinhados em colunas periclitantes, maços de jornais lidos, volumes sobre pintura. Da famosa gata temperamental, Yum-Yum, não há rasto.

Mas Lessing, 89 anos cumpridos a 22 de Outubro, diminuta e enrugada como uma sábia, mostrará o seu feitio felino, imprevisível, lúcido.

A romancista Margareth Atwood chamou-lhe "alma intrépida", "escritora excelente" que "teve uma vida muito interessante". É uma declaração branda.

A biografia de Lessing é um compêndio de história. Nasceu na antiga Pérsia, hoje Irão; cresceu entre uma quinta, na Rodésia, hoje Zimbabué, e a África do Sul, no meio de brancos enfiados no seu próprio mundo.

Abandonou a escola aos 15 anos, casou aos 19, teve dois filhos que, após o primeiro divórcio, só voltaria a ver na década de sessenta. Queria respirar. O segundo casamento, com um judeu alemão, comunista, que lhe deixou o apelido e um terceiro filho, também não durou. "Percebi que prefiro o luxo da solidão." Foi militante comunista, desencantou-se, foi ícone feminista por arrasto, diz ela. E recebeu o Nobel da literatura, 40 anos depois de o esperar.

A escrita aconteceu-lhe cedo. Mas só aos 30 anos é que apresentou o romance A Erva Canta, já em Londres, onde teve empregos de subsistência. Até jornalista foi, apesar da sua pouca consideração pela profissão. Os seus livros (traduzidos na Editorial Presença, Publicações Europa-América, Livros do Brasil ou Livros Cotovia) tanto versaram questões humanistas como ficções científicas, sem pejo em afrontar as convenções.

As Avós, último livro de contos traduzido para português, trata de "histórias verdadeiras, à exceção de uma. A história-título será um filme. Não me importo que façam uma adaptação cinematográfica, desde que quem tenha o dinheiro não fuja com ele!"

Diz-se que Alfred & Emily, agora editado, será o seu último livro. É verdade?

Sim, é verdade. Estou indisponível para escrever. Não é uma ausência de histórias para contar, é falta de energia. A minha fratura nas costas está a afetar-me, tenho um problema cardíaco... Não consigo subir as escadas até ao meu quarto, onde estão a máquina de escrever, os meus objetos.

E quando não tenho energia, não sou capaz de produzir trabalho. Escrevi muitos livros, mais de 50, não preciso de escrever mais.

Essa falta de energia relaciona-se com as suas "queixas" devidas à agenda sobrecarregada por causa da atribuição do Nobel?

Também tem a ver com as infindáveis entrevistas por causa do prémio, sim. Espero que o novo Nobel goste de falar, pois é isso que vai fazer, durante um ano inteiro! Eu teria gostado que este ano ganhasse o [Philip] Roth, gosto muito dele e ele ficou zangado por ter sido eu a ganhar em 2007! É um homem "torto".

O Prémio Nobel recompensou a sua audácia ou a sua resistência?

Não sei. Disseram-me que nunca ganharia, portanto deixei de pensar no assunto. Foi uma surpresa genuína quando aconteceu: eu sair do táxi e ter aquela multidão de jornalistas à espera, na minha porta, foi terrivelmente engraçado. O meu filho comprou cebolas francesas e colocou-as no meu pescoço, como um colar. Foi tudo divertido.

Já escrevera sobre os seus pais, nas memórias.

Porquê este Alfred & Emily? Os meus pais foram duramente afetados pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial.

Neste livro, quis fazer-lhes justiça: aboli esse conflito, tornei-o inexistente. Portanto, eles não têm mais desculpas. Tudo o que o meu pai sempre quis foi ser um lavrador, mas nunca teve dinheiro para cumprir esse sonho. O caso de minha mãe foi mais difícil de escrever, pois era muito talentosa, enérgica.

Assim, dei-lhe, simplesmente, o tipo de vida adequado aos seus muitos talentos, que era o que ela teria desejado, o destino de uma pioneira da educação que toca a vida das pessoas. E dei-lhe dinheiro, pois sem ele nada se consegue fazer. Criei-lhes uma nova vida e, no outro lado do livro, escrevi o que realmente lhes aconteceu. Mas este é um livro antiguerra, se se quiser.

Vê-o como um manifesto político ou ficção?

Devo dizer que tenho muita dificuldade em distinguir entre ambos. Escrevi este livro com compaixão, claro, mas é uma ficção sobre o que aconteceu aos meus pais em resultado da Primeira Guerra Mundial. Não é um discurso sobre o conflito, mas emerge ali a denúncia dos seus efeitos devastadores.

Já lhe ocorreu que poderia não ter havido uma revolução russa nem um império soviético? Que não existiria nenhum Hitler nem aconteceria outra Guerra Mundial?

Atravessou grande parte do século XX. O que aprendemos nós, afinal?

Não aprendemos nada! Temos estúpidos primeiros-ministros a começarem uma guerra no Iraque, no Afeganistão. Estamos no meio de uma gravíssima crise financeira, o que significa que as pessoas não realizarão os seus sonhos. São tempos assustadores, que, pelo medo, provocam reações assustadoras.

Na Europa, tivemos, recentemente, uma época fácil, tornámo-nos mimados, e pergunto-me se as pessoas estarão à altura da dureza que se adivinha. Esta não é uma geração que tenha conhecido qualquer dificuldade.

Falemos da geração inicial, a do livro A Fenda, onde defende que as mulheres são os seres originais e os homens uns "esguichos" simplórios. As nossas vidas não têm influência?

A maquilhagem genética faz-nos o que somos. Os homens têm o cromossoma Y, e por isso são como são. Acho que a vida não é tão importante como os genes.

A sua biografia tem sido rica em vivências políticas, intelectuais. Isso não a moldou?

Não, os genes são mais importantes. Nem tudo está escrito, claro. Há a experiência: vivi duas grandes guerras, durante a segunda estava casada com um refugiado alemão, para o livrar de um campo de concentração. Viver em Inglaterra tem sido para mim um tempo fácil, melhor.

África marcou a sua vida. Como olha agora para esse continente?

Está acabado. O Zimbabué está nas mãos de Mugabe. Não consigo imaginar como será recuperado, já que ele prejudicou tanto o país. A África do Sul está invadida de pobreza, de sida, de miséria. Tenho uma filha que vive na Cidade do Cabo. Quando vivia lá era muito crítica da dominação branca. Agora, olho para trás e vejo que fizemos estações de comboios, escritórios, havia água corrente e energia. Portanto, fizemos algumas coisas bem. Viajei muito, agora parei. Com 90 anos acho que tenho o direito de sentir a viagem como algo de difícil.

Depois de uma infância no colégio católico e quatro anos de militante no Partido Comunista, pode dizer-se que a sua ideologia é a liberdade?

Sim. Eu não era uma católica praticante, estava num convento católico onde se acreditava num Deus muito mau. Quanto aos anos que estive no Partido Comunista, eu não era uma verdadeira comunista.

A ideologia apelava a muitas pessoas, nessa altura, eram os efeitos da ressaca da guerra.

Mas essa ilusão não durou. Quando voltei a Inglaterra, fiquei em casa de uma mulher que sabia muito sobre o que se estava a passar no interior da União Soviética, e que me tirou as ilusões.

A educação católica deixou-lhe marcas?

Não, o episódio curou-me de Deus. O que acontecia era que os pais protestantes mandavam as filhas para o colégio católico, na condição de que não influenciassem a sua orientação espiritual. Tínhamos inveja da minoria das raparigas católicas, com o seu mundo de água benta e Virgem Maria e aqueles santos e catedrais. É claro que me apaixonei pela Virgem Maria. Lembro-me de ter ido a uma catedral e ter ficado em êxtase perante uma pequenina, insignificante, muito má estátua da Virgem Maria. Uma pessoa acredita em tudo! É claro que não durou, os meus pais alimentaram-me com propaganda anticatólica. Resolvi a questão: tornei-me ateia.

A ideologia comunista preencheu esse vazio?

Foi algo completamente diferente. Era ser-se comunista numa era diferente. Nesses dias, toda a gente lia. Agora, ninguém lê.

Quando conheci os comunistas, estes eram ou uma classe trabalhadora altamente politizada e culta que lia tudo, ou refugiados europeus cultos. Foi uma época maravilhosa: era a primeira vez que conhecia pessoas que liam tanto como eu. E que concordavam comigo, na minha forma de ver o mundo. É claro que esse estado de graça não poderia durar.

Voltando à liberdade, esta define os seus romances?

Não. Temos de definir a palavra, fazer perguntas. Somos livres? Eu acredito que não somos assim tão livres. Com tudo o que está a acontecer, acho que não podemos usar essa palavra tão facilmente. Sou nova para me lembrar da Grande Depressão, mas conheço os resultados. Os casamentos a quebrarem, as mulheres a ficarem desprotegidas, o mundo a colapsar como agora...

O feminismo está a perder terreno?

É o que parece estar a acontecer. Geneticamente, tem de ser assim, pois elas procuram um apoio forte para si e para os filhos. As mulheres têm de lutar mais pelo seu equilíbrio emocional, com aquelas hormonas todas. Não sei se é uma deceção. Mas, hoje, há liberdade de escolha: as mulheres podem escolher não casar. Essa é uma grande conquista. Recordo-me de ouvir uma velha feminista dizer-me, em jovenzinha, que há coisas pelas quais se deve lutar e uma é o pagamento igual por trabalho igual. Estamos ainda longe dessa realidade. Liberdade de oportunidades, isso temos. As mulheres são livres, até para ir para o exército, coisa que não me agrada.

Não vê esse acesso como um empowerment?

Talvez, se for um objetivo de vida. Mas não me sinto confortável com a ideia de raparigas na frente de batalha. Não gosto. Acho que ganhei o direito a defender posições pouco razoáveis, se assim o desejar.

No pós 11/9, há um baby boom. A maternidade tornou-se crucial para a identidade feminina, se é que alguma vez o deixou de ser...

Eu gosto de colocar as coisas de forma diferente. O que aprecio é que as mulheres possam declarar livremente "não, eu não quero ter filhos", algo impossível antes da democratização dos métodos contracetivos, como a pílula. Já pensou como deveria ser, no passado, quando uma mulher não possuía instinto maternal? Tinha de casar e criar uma prole. Um pesadelo. Poder escolher é uma maravilhosa conquista.

Deixou os seus filhos, ao fugir da "realidade branca de África". Sente-se pacificada com essa decisão, com a maternidade?

Na altura, o que eu deixei foi uma vida aborrecida, limitada, entediante. As crianças não foram a causa. Gostei bastante de estar grávida, desse sentimento. Mas imagino que esta seja uma das maiores tragédias do mundo: uma mulher que não tem instinto maternal e que tem de se conformar com esse destino imposto. Que pesadelo!

Ainda é entusiasmante ter um livro novo, comprado, lido?

Os meus livros estão todos disponíveis, até os que têm 50 anos continuam a ter leitores. É surpreendente. No ano passado, fui convidada para falar num clube do livro de jovens, mais jovens do que o romance escolhido, O Caderno Dourado que trata de coisas que nada têm a ver com a sua realidade.

Foi difícil falar-lhes da maneira como houve um estilhaçamento da esquerda em todo o mundo, como explodiu um sonho, bum! Uma definição algo infantil pelos padrões atuais. Mas eu tinha de dar a palestra. E foi uma noite divertida.

Estamos surdos e cegos ao sentido do devir histórico?

As pessoas não estão minimamente conscientes do peso da História. Em parte, porque a curiosidade desapareceu. Esta deve ser a geração menos curiosa de todas: não tem aquela sede, aquela inquietação que nos roía por dentro. A nossa paixão mais intensa era a enorme vontade de conhecer, de olhar para trás. Nós tínhamos de saber! Acredito que a falta de curiosidade é perigosa.

"Se não sabes o que o passado foi, vais repetir os mesmos erros." É uma fatalidade.

A sua geração não tinha tantas fontes de informação, a TV, a Internet...

Mas tínhamos imensos livros! A Internet, se não matou a curiosidade, mudou as mentes das pessoas, o seu espectro de atenção é mais curto. Talvez seja porque não acreditam ter qualquer tipo de influência. Nos jovens, há um sentimento de desesperança, de que tudo é demasiado grande para eles.

O que está errado: os grandes movimentos do século XX passaram por eles.

Gostaria de ser lembrada como alguém que se levantou por muitas causas?

Não por demasiadas coisas. Há causas pelas quais não me teria importado de lutar agora.

Mas fui uma das primeiras a levantarem-se na África do Sul. As pessoas esquecem-se mas, quando eu era jovem, o império britânico e o seu sistema profundamente racista dominavam. Os meus pais acreditavam que Deus colocou os britânicos na terra para controlar o mundo. As pessoas mais parecidas com eles que encontrei eram mineiros de ouro, em Vladivostok, que acreditavam na União Soviética com essa mesma fé cega.

É engraçado como é que isto foi possível.

E os americanos pensam assim agora...

A nova versão é a emergência da "cruzada" islâmica?

Os muçulmanos acreditam nessa visão.

E o que interessa perceber é que não se pode fazer nada com crentes, acreditem. Sei-o, porque fui educada por gente assim. Os argumentos não mudam nada, aprendi-o da maneira mais dura. As mentes das pessoas mudam por si próprias, não por as tentarmos convencer. Algo acontece. Apenas isso.

Sílvia Souto Cunha (entrevista publicada na VISÃO nº 825 de 25 de dezembro de 2008)

 

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