Catarina Sobral tem 28 anos, começou a trabalhar como designer,
mas cedo percebeu que gostava mais de ilustrar histórias. Para crianças ou não.
E acredita: “Todos os meus livros são para todas as idades”
O mais importante palco de negócio da edição de livros
para crianças e jovens escolheu dar 21 mil euros à portuguesa Catarina Sobral
pelo seu trabalho O Meu Avô (Orfeu Negro). O prémio inclui ainda ter o
livro publicado pela Fundácion SM, uma editora espanhola com grande projeção no
Brasil, Chile, Colômbia e Peru.
A ilustradora, que
também assina o texto do livro, foi a única portuguesa selecionada este ano
para a principal exposição que acompanhou a Feira do Livro Infantil de Bolonha,
que decorreu no final de Março e deu a conhecer 41 jovens artistas (com menos
de 35 anos) de todo o mundo. Entre estes, Catarina Sobral foi considerada a
melhor.
O júri – Roger Mello (Brasil), Sophie van der Linden
(França) e Pablo Núñez (Espanha) – elogiou em O Meu Avô “um domínio
claro da composição, uma grande maturidade e uma forte identidade”, valorizou
também “a referência à tradição gráfica dos anos 1950, com uma interpretação
contemporânea”.
“Não podia estar mais feliz”, disse ao PÚBLICO
Catarina Sobral, que tem 28 anos, sorri bastante, estudou Design na
Universidade de Aveiro e Ilustração na Escola Superior de Educação e Ciências,
em Lisboa, onde fez um mestrado em parceria com a Universidade de Évora e a
Quási Edições. Foi durante esta última formação que criou os seus dois
anteriores livros: Greve e Achimpa. “Foram processos experimentais”, conta,
explicando as diferentes técnicas para cada obra: “Colagens e monotipia no Greve;
tinta de óleo, lápis de cera e lápis normal no Achimpa.”
Para o livro distinguido em Bolonha, usou um processo
parecido com a serigrafia, com as cores separadas. “Foi todo feito em tinta
acrílica sobre acetatos, que depois é raspada. Como é impresso em cores diretas,
aquilo que é preto no acetato sai, na gráfica, uma vez a verde, outra a
vermelho, a rosa ou a amarelo. Depois, sobrepostos, criam aquele quadro preto.”
No tempo em que havia tempo
Que livro é este? “É um livro sobre o tempo. Duas
personagens que vivem tempos muito diferentes. Um deles é o avô do narrador e o
outro é o vizinho desse avô. A maneira como o neto descreve as atividades
quotidianas do avô é sempre reforçada pelo contraste com uma outra personagem,
o Dr. Sebastião.” Sobre este último não há informação verbal das atividades
quotidianas, “mas o narrador visual descreve-as por comparação e por antítese
através de ilustrações de página simples”.
“O livro não pretende ser moralista, não tem qualquer
juízo de valor. No fundo, é uma descrição dos tempos modernos e uma apologia
dos tempos em que havia um pouco mais de tempo”, explica a ilustradora,
filha de dois professores de Matemática e irmã mais nova de uma designer.
Luís Mendonça, professor na Faculdade de Belas-Artes
da Universidade do Porto e na Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos,
salienta neste livro “as sugestões, as citações que Catarina Sobral faz, quer
no texto quer na ilustração, à pintura, à literatura, ampliando ligações,
trazendo novas leituras e aumentando os desafios ao leitor”.
O adulto conseguirá identificar referências a Almada
Negreiros, Fernando Pessoa, Jacques Tati, Édouard Manet e Andy Warhol. As
crianças, não. Pelo menos por enquanto.
O professor, que é também editor (Edições
Eterogémeas), diz que o trabalho da ilustradora “revela estudo e atenção à
ilustração contemporânea, investindo de forma empenhada, bebendo referências,
explorando estratégias plásticas e literárias. Estes destaques e as novas
experiências conformarão responsabilidades cada vez maiores...”.
Sobre a busca da técnica apropriada para o que se quer
exprimir, comenta: “Se entendermos a técnica um pouco como a voz, pensando no
‘estilo’ desta ou daquela pessoa, parece-me natural que ela mude, por um lado,
e, por outro, que se mantenha. Há uma idade em que se muda de voz várias vezes,
em que nos ajustamos às diferenças. A sonoridade, a colocação, a projeção
da voz fazem parte de um trabalho natural. Não é certo nem errado, não é melhor
nem pior, é simplesmente natural. É certo que a voz influencia o que se diz e
como se diz, mas não é seguramente o mais importante, o importante é o que
dizemos, como o dizemos, para quem o dizemos. E o trabalho do ilustrador não
começa nem acaba na voz, quer dizer, na técnica.”
Explica Catarina Sobral, com simpatia e entusiasmo:
“Embora tanto o Greve
como o Achimpa
sejam sobre palavras, a ideia de greve pedia uma linguagem mais relacionada com
a arte gráfica do século XX, os cartazes comunistas, o construtivismo russo,
mesmo as cores são parecidas: o vermelho, o preto, numa estrutura plana. Quis
remeter para uma altura em que havia mais lutas proletárias, para estar de
acordo com o tema.” Por isso, reconhece-se nesta obra uma certa estética
política.
“O Achimpa”, prossegue a autora, “é cómico, há uma certa
ironia pela rápida adoção, do ponto de vista dos especialistas, de uma palavra
desconhecida, então eu quis usar uma linguagem mais leve e descontraída.” Aqui,
a opção foi a de “fazer um travelling urbano, porque a palavra vai passando de boca
em boca”. Em relação a O Meu Avô, o objetivo foi mesmo o “de remeter para os
anos 1950”.
O trabalho invisível do editor
“Quando o Greve chegou à editora, para mim, ainda não era um
livro, era um projeto”, conta Carla Oliveira, responsável pela Orfeu Negro. “A
Catarina enviou-nos um email e eu reenviei-o para o nosso designer, Rui Silva,
e para um ilustrador amigo com quem trocámos ideias. Ninguém me respondeu
durante dois meses.” O assunto ficou esquecido. “Um dia, recebo um email do
Rui Silva com um link para o site da Catarina para que eu visse as imagens do Greve.”
Carla Oliveira recorda agora divertida como na altura
ficou “irritada”, mas logo marcou reunião com o designer e a ilustradora para
verem os originais. Seguiu-se todo o trabalho invisível que é próprio dos
editores e diretores de arte competentes na orientação dos novos autores.
“Passou quase um ano entre essa reunião e a publicação do livro”, diz a
editora. “Foi o primeiro livro que fizemos nestes termos, um trabalho em
conjunto muito interessante.”
Com o Achimpa, o processo foi muito diferente. “Quando nos foi
apresentado, era um livro feito”, diz Carla Oliveira. “A dificuldade do Achimpa foi
fotografar com qualidade as texturas que ela tinha dos próprios graffiti.”
Houve pouca discussão, mas uma alteração importante: “No meio do livro, há uma
página dupla onde se representam livrarias conhecidas. A escolha era muito
local, digamos assim. Eram alfarrabistas do Porto e outros de que a Catarina
gostava. Quisemos torná-la internacional. Fizemos uma pesquisa e ela desenhou
livrarias de outros países.”
Com O Meu Avô, o projeto também já chegou muito acabado,
“mas ainda se trabalhou um bocadinho a nível de direção de arte, a nível de
texto e da própria reorganização da história”. Palavras da editora: “Andámos a
fazer puzzles,
com as folhas no chão, e depois a dizer: ‘Esta parte do texto fica melhor aqui.
Ai, mas não pode ser porque repete a cor. Então, vamos pôr estas mais para o
fim.’ Andámos assim nos últimos dias, até o livro ir para a gráfica.”
Do trabalho e convívio com a ilustradora, sublinha:
“Ela aceita muito bem as propostas. Com a Catarina, é sempre muito fácil
debater, discutir, escolher. Ela faz melhorias, arranja uma solução. Talvez
seja esse um dos segredos do nosso trabalho. E foi muito bom ver a evolução
rapidíssima da Catarina. Às vezes, digo-lhe: ‘Para lá de receber prémios.’”
Greve foi Menção Especial no Prémio Nacional de Ilustração
2012, Achimpa
venceu o Prémio de Melhor Ilustração para Livro Infantil do Festival da Amadora
2013 e o Prémio Autor da Sociedade Portuguesa de Autores na categoria de Melhor
Livro Infanto-Juvenil no mesmo ano.
Agora, com O Meu Avô, diz a editora, “foi o reconhecimento internacional
dos pares”. E, bem-disposta, completa: “E até dos ímpares...”
Ilustrar os outros
Pela primeira vez, Catarina Sobral está a ilustrar
textos de outros autores, de Javier Solino (Kalandraka) e de Tatiana Belinky
(Editora 34, brasileira). “É um trabalho diferente, porque não concebemos de
início. Podemos conceber o formato, discutir o número de páginas, como se
distribui texto. Mas a ideia inicial, inicial, não é nossa e então acaba por
ser um livro que, por mais que a ilustração tenha um grande predomínio, é
sempre muito menos nosso do que um livro em que sejamos nós a escrever.”
Neste novo exercício de ilustrar, tenta que as imagens
“deem uma outra leitura ao texto”. “Tento não ser literal, quero que a
ilustração tenha bastante cunho pessoal.” Quando assina texto e imagem, o que
surge inicialmente é a ideia. “Para a estruturar, escrevo o texto todo
primeiro. Mas quando estou a escrever o texto já estou a decidir o que
desenhar. É uma conceção paralela, mas o esqueleto começa pelo texto”, explica.
O sucesso não lhe trouxe receio, antes confiança. “À
medida que vou desbravando caminho, vou começando a acreditar mais no meu
trabalho. E ao ter o reconhecimento de pessoas tão importantes como os jurados
da Feira de Bolonha e da SM, fico cada vez mais convencida de que todo o meu
investimento e toda a pesquisa que faço valem a pena. Sinto que é verdade, que
estou a conseguir passar isso com uma maior consciência das várias coisas que
compõem o desenho, que estou a dominar cada vez mais a cor, a composição, a
estrutura narrativa. Sinto-me mais confiante.”
O próximo livro da sua autoria já está pronto e será
lançado na Feira do Livro de Lisboa. Chama-se Vazio, é só de imagens
e foi editado pela Pato Lógico.
Afinal, o que é um bom livro ilustrado? O professor e
editor Luís Mendonça responde: “Um bom livro ilustrado estimula percetiva e
intelectualmente o leitor, sem conivência com a preguiça. Requer uma ilustração
atraente mas sem cosmética, agradável mas opinativa e não subserviente ao
texto, que favoreça a experiência literária e visual do leitor, ultrapassando o
seu público-alvo. Um bom livro ilustrado respeita o leitor: respeitar é
desafiar, é enriquecer a interpretação, é apelar aos sentidos, à visão, ao tato.
O que é essencial num livro ilustrado é a orquestração do todo em si mesma, a
relação entre texto, ilustração, design, qualidade dos materiais e da
impressão.” É o que Catarina Sobral vai tentar continuar a fazer.
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