Entrevista a Teresa Calçada, coordenadora do gabinete da Rede
de Bibliotecas Escolares.
À frente da Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) desde 1996,
Teresa Calçada despede-se com a certeza que o programa vai continuar, apesar
das dificuldades.
Não é exagero dizer que Teresa Calçada é a mãe da Rede de
Bibliotecas Escolares (RBE). Técnica do Instituto Português do Livro desde
1982, esteve na génese da criação da Rede de Bibliotecas Municipais e, anos
mais tarde, fez parte do grupo que pensou as bibliotecas nas escolas, acabando
por assumir a sua direção. No final de 2013, depois de 17 anos à frente da RBE,
pediu a reforma. "Não sei bem porquê", confessa. Contudo, tem a
certeza que o trabalho começado não pode voltar atrás. Para já, vai fazer voluntariado
com a sua amiga Isabel Alçada, autora e ex-ministra da Educação, na associação
Voluntários de Leitura. Vão às escolas ler com os mais pequenos.
O Ministério da Educação e Ciência já fez saber que
"está a analisar a substituição de Teresa Calçada que deixa o cargo por
aposentação".
Atualmente, há
bibliotecas em todos os estabelecimentos de ensino?
Todos os agrupamentos têm biblioteca. O sistema responde a
todos os alunos que estão na escola. O que acontece é que às vezes há escolas
do 1.º ciclo que não têm, mas têm serviço de biblioteca. Ou seja, a sede de
agrupamento obriga-se a ter um serviço de itinerância.
Não devia haver uma
biblioteca em cada escola?
Não. Desde o início do programa que está previsto nos objetivos
que todas as escolas com uma dimensão de 100 ou mais alunos tenham biblioteca.
Mas todos os alunos devem ter [acesso a] biblioteca ou serviço de biblioteca.
Hoje, isso está assegurado.
A RBE tem vindo a
sofrer cortes no seu orçamento. Houve anos em que o investimento ultrapassou os
quatro milhões de euros, mas em 2013 tinha apenas 625 mil euros. Como é este
ano?
O orçamento deste ano é equivalente ao do ano passado, que
caiu. Caiu porque o sistema não precisa do que já precisou, houve picos e
velocidade cruzeiro. Por outro lado, caiu porque houve quebra na despesa do
Orçamento do Estado com a situação financeira que se vive na Europa e em
Portugal, em particular.
Sentiu diferenças no
tratamento da RBE entre governos PS e PSD?
Muito do que representa ter hoje esta rede deve-se a todos os
ministros, desde o professor Marçal Grilo, que foi o precursor, passando por
Guilherme d’Oliveira Martins, Augusto Santos Silva, Maria de Lurdes Rodrigues,
Isabel Alçada e agora Nuno Crato. O programa mereceu sempre o respeito dos
governantes.
Esqueceu-se de alguns
ministros, o professor David Justino e Carmo Seabra, ambos do PSD.
Todos! O programa mereceu o respeito de todos, para além da
questão dos partidos. Quando fizemos 12 anos houve um fórum em Lisboa, vieram
dois mil professores bibliotecários e na primeira fila coabitavam os vários
ex-ministros da Educação, de partidos diferentes.
O programa teve a sorte de trabalhar com pessoas
interessantes que compreenderam filosófica e socialmente o papel das
bibliotecas. No nosso país, onde os níveis de literacia são baixos, os
políticos compreendem que as bibliotecas são instrumentais para as competências
leitoras.
Essas competências têm
vindo a mudar? Até que ponto a biblioteca escolar deixa de fazer sentido com as
novas tecnologias, onde tudo se pode ler e procurar num Tablet?
Hoje há multiliteracias que são mais completas. O que as
bibliotecas têm é a obrigação de ajudar à capacitação leitora. Não há
resultados a Matemática ou a qualquer outra disciplina curricular que não passe
pelas competências leitoras.
As bibliotecas têm o papel de valorizar a curiosidade e a
informação mas também treinam as competências para a leitura e para o uso das
ferramentas todas. Aos professores, cabe-nos ajudar à leitura e à
descodificação deste complexo mundo multimodal.
Qual é o maior desafio
dos professores bibliotecários?
O grande desafio é desmistificar. Ajudar os alunos a perceber
que, não é porque está na Internet que a informação é verdadeira. É preciso
ajudá-los a distinguir o verdadeiro do falso, a saber manipular a informação, a
ter um comportamento crítico.
Ninguém nasce leitor, aprendemos a ser no papel, agora temos
de aprender naquilo que é a lógica dos gadgets e isso, é para nós, um dos objetivos
das bibliotecas.
Porquê?
Porque a função da biblioteca é fazer leitores e isso é
difícil porque não se é naturalmente leitor. É cada vez mais difícil fazer
leitores porque o tempo é mais rápido e, paralelamente, o tempo da leitura é
lento. É um paradoxo, o qual somos convocados a contrariar. A leitura vindo a
complexificar-se e hoje captar a atenção, fazer modos de relacionamento —
porque estamos a falar de tecnologia e de comunicação —, tudo isso é difícil.
Temos dificuldade em comunicar com os alunos se não usarmos as tecnologias, mas
não é um complemento, e sim um instrumento, e isso é uma dificuldade para
muitos professores.
Um aluno que entra hoje
na biblioteca não vai à procura de uma enciclopédia mas de um computador?
Naturalmente, como qualquer um de nós. É um instrumento que
existe onde está tudo. Agora é preciso saber validar a informação que se
recebe.
Isso significa que os
recheios das bibliotecas mudaram? Há menos livros?
A RBE tem uma política de abate dos livros, o que é
complicado. Temos feito abate de manuais escolares, por exemplo. Se houver
muita falta de espaço, claro que tem de se fazer. Temos bibliotecas de escola
que são maravilhosas, como as dos grandes liceus e aí não há razão para tirar
os livros. Mas de há dez anos para cá que deixámos de comprar enciclopédias
para as novas bibliotecas. Hoje há uma coleção digital e se é menos rica é
porque a produção em português ainda é frágil, mas tende a aumentar.
Mas voltemos à
simulação da entrada de um aluno numa biblioteca. Para onde é que se dirige?
Claro que a sua primeira vontade é usar os gadgets. Depois
chegam aos livros quando orientados. Por exemplo, quando o professor
bibliotecário lhe mostra que demora mais tempo no computador do que no livro.
Depois, o gadget tem a perversidade da cópia e o professor bibliotecário
explica que não pode copiar, que tem de por a fonte de onde tirou a informação.
É uma aprendizagem. Aprende-se a fazer, fazendo.
O aluno que entrava na
biblioteca da escola há 17 anos era diferente do de hoje?
Há 17 anos, já havia computador. Mas hoje as escolas estão
muito à frente. Podemos ter a infelicidade, neste momento em que temos
problemas financeiros, de ter mais dificuldade em substituir materiais, mas
penso que não se pode recuar na questão do patamar das novas literacias e dos
equipamentos associados, senão é dificílimo recuperar. De facto, chegámos a um
patamar que não podemos perder sob o risco de retomarmos indicadores de
analfabetismo.
Com o desinvestimento
que tem vindo a ser feito, esse risco existe?
Há um risco. A idade das trevas existe! A nossa escola, com
todos os defeitos e virtudes, tem tido um papel importantíssimo na mobilidade
social. E agora que esta questão está dificultada por razões do desemprego e
dificuldades vividas pela classe média, por maioria de razão deve apostar-se na
educação porque é o único capital que as pessoas têm para a mobilidade social.
Por isso a RBE tem de sobreviver com êxito. As dificuldades justificam uma
política pública de leitura, nas escolas e fora delas.
Com a sua saída, o que
é que ficou por fazer?
Temos objetivos que ainda não foram concretizados. Primeiro,
cobrir todo o universo das escolas — faltam as do 1.º ciclo. Segundo, não
comprometer os recursos humanos sem os quais não há bibliotecas.
Atualmente, há
agrupamentos que tinham três e agora têm apenas um professor bibliotecário.
Houve uma redução, mas faço os possíveis para compreender o
país em que estou e num país em que bens como a saúde e a educação levam
cortes, as bibliotecas escolares não podiam ficar intocáveis.
O que fizemos foi lutar para que o programa não fosse posto
em causa e isso implicou uma diminuição dos recursos. Procurámos readaptar-nos
às novas circunstâncias. Mas estamos a trabalhar no fio da navalha e achamos
que chegámos a um patamar em que não podemos atacar os recursos humanos porque
uma casa sem gestor não pode funcionar e manter um nível de coleção em todos os
suportes que alimentem o próprio edifício. Uma rede sem equipamentos e sem
pessoas com formação não existe.
Que outros objetivos
faltam concretizar?
Ter uma coleção. É preciso ter a consciência que para ter
pessoas letradas é preciso ter instrumentos e usá-los.
A biblioteca escolar é
um espaço onde os alunos vão nas horas vagas ou há um trabalho com o resto da
escola?
Existe determinado tipo de matérias curriculares que podem
ser feitas entre a sala de aula e a biblioteca. A escola é uma rede de
informação. Quando nascemos era essencialmente para levar a literatura aos
alunos. Hoje não temos medo que a biblioteca seja instrumental e construtora do
sucesso académico dos alunos. E esta é uma mudança muito importante em todos,
nomeadamente nos professores.
Mas a biblioteca também é o local para onde os professores
mandam os alunos mais indisciplinados, quando se portam mal na sala de aula.
É para os que se portam mal e que vão ajudar a professora
bibliotecária. Mas é também um lugar de acolhimento para os que têm de estar
mais horas na escola, para os que gostam de estudar, para os que não gostam e
vão à procura de ajuda. A biblioteca é uma forma de inclusão social.
Os resultados dos
alunos portugueses nos testes da OCDE, que foram elogiados por esta
organização, também se devem à RBE?
Eu não quero dizer que não! Eu penso que qualquer análise
mais cuidada verifica que são muitos os elementos que contribuem. Pois se em
todo o mundo contribuiu não é no nosso país que deixa de o fazer. A biblioteca
é o local onde os alunos podem ir e consultar, fazer trabalhos, ouvir música,
ler, ver filmes. Como é que isso não contribui para o seu sucesso? O mesmo se
pode dizer do Plano Nacional de Leitura (PNL) ou do Plano Tecnológico. Claro
que foi muito importante para mudar o rosto da escola.
A RBE foi ofuscada com
a criação do PNL?
As bibliotecas escolares faziam o que o PNL veio fazer, mas
este foi criado como uma imagem de marca, o "Ler +", trouxe uma
valorização social à leitura e é natural que as pessoas conheçam mais do que a
rede. A RBE é o tosco, é a infraestrutura como é o refeitório ou o ginásio,
está lá e depois vem a superestrutura que é o PNL. Claro que vem com um lado
mais festivo, como a cigarra [da fábula A cigarra e a formiga]. A tristeza é se
não houver a formiga, que é a biblioteca. O PNL foi ótimo para as bibliotecas e
este não era nada sem nós porque além das infraestruturas existem também os
nossos recursos humanos que fazem tudo por ele.
Com a sua saída, a RBE
corre o risco de acabar?
Não acredito que alguém faça essa maldade ao país!
Mas com uma aposta
maior na autonomia das escolas, as bibliotecas não passarão a ser da
responsabilidade daquelas e já não precisarão de pertencer a uma rede?
O sucesso da RBE não se deve apenas ao interesse dos
ministros, mas também às direções das escolas, se estas não acarinharem as
bibliotecas, aquelas morrem. A biblioteca é da escola e tem de ser vivida à
medida das necessidades de cada comunidade escolar. Portanto, já há autonomia.
Mas também há um pacote de orientações que, para já, ainda precisa de ser
central.
Fonte: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/as-dificuldades-justificam-uma-politica-publica-de-leitura-nas-escolas-e-fora-delas-1620174
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